segunda-feira, 22 de junho de 2015

A ÁRVORE QUE CANTAVA




A árvore que cantava
Era Janeiro, uma daquelas manhãs claras e secas que fazem lembrar velhos montanheses de bigodes gelados e olhos picos do sol.
 Nevara.
 Grandes e densos flocos tinham caído durante toda a noite.
 Depois, com a chegada do dia, um forte sopro de vento norte limpou o céu.
A floresta, que começa atrás da casa e se estende pela montanha, estava completamente adormecida, envolta num grande silêncio gelado.
 Por entre as árvores estendiam-se sombras azuis.
 Os pinheiros vergavam sob a carga da neve, pois o vento da madrugada soprara apenas o suficiente para afastar as nuvens.
Isabel e Gerardo viviam ali, junto do bosque, em casa dos avós.
 Era uma casinha cinzenta de portadas verdes. Lá longe, na margem gelada da ribeira, ficava a aldeia, que mal se via naquela manhã, bem como o caminho que seguia ao longo dos campos e atravessava a pradaria.
Da janela, as duas crianças esforçavam-se por segui-lo com o olhar. 
Viam-no bem até à primeira curva, junto do grande ácer morto há dois anos, e que o avô ainda não tinha decidido cortar, mas, para lá dele, tudo se confundia.
Enquanto estavam assim, de nariz colado ao vidro, Isabel e Gerardo viram passar um pássaro, depois outro e depois um bando que se empoleirou na ramada fazendo cair montinhos de neve.


— Estão com frio — disse Isabel. — É preciso dar-lhes sementes ou pão para eles comerem.
Arranjou alguns grãos e Gerardo abriu a janela.
— Fecha depressa — gritou o avô — que o Inverno vai entrar-nos pela casa dentro!
As crianças puseram-se a rir.
 Como se o Inverno pudesse entrar numa casa!
Isabel atirou os grãos para a vereda que o avô tinha varrido para poder ir buscar lenha.
 A avó pôs-se a tossir e levantou as tampas redondas do fogão para lá meter um enorme cavaco.
 Depois de fechada a janela, dois pássaros desceram da latada.
 Os outros pareciam inquietos mas, ao verem que nada se mexia, voaram também, enquanto outros desciam do telhado, direitinhos, quase sem baterem as asas.
— A comida não vai chegar para todos — disse Isabel. — Estão a vir cada vez mais.
— Chega! Já chega! — gritou a avó. — Se lhes deres tudo, as minhas galinhas é que vão ficar sem nada!
— E se continuas, vais atrair todos os pássaros da floresta — disse o avô exagerando.
Isabel lá se conformou e voltou para a janela.
 Ficou bastante tempo ao lado do irmão, limpando o vidro embaciado quando deixava de conseguir ver.
 De repente, agarrou no braço do irmão e disse, apontando:
— Olha para o caminho!


Gerardo levantou os olhos.
 Ao fundo, para lá do ácer morto, um curioso animal avançava sobre a neve. Parecia o coelhinho de corda mecânico que o Pai Natal tinha trazido a Gerardo, alguns anos atrás.
 Saltitava, vacilava da direita para a esquerda e parava a todo o momento, exatamente como o brinquedo.
 Estava vestido de pelo cinzento e tinha orelhas compridas, que se tocavam no cimo da cabeça, tal e qual o coelho.
Esta aparição era tão surpreendeste que as crianças esqueceram as aves e ficaram de boca aberta a observar aquele estranho animal cujos olhos, por vezes, refletiam luz.
Quando o coelho, que caminhava apenas com as patas de trás, chegou junto da sebe que circundava o jardim, as crianças só lhe viram a cabeça.
— Parece que vem para aqui! — murmurou Gerardo.
— É verdade! Está a contornar o jardim.
O coelho desapareceu e seguiu-se um longo silêncio angustiante.
 As crianças sustinham a respiração, à escuta.
 Em breve ouviram-se passos no degrau de pedra, e os pássaros voaram tão rápido que as crianças se assustaram.
— Não ouviram nada? — perguntou o avô.
Os dois pequenos abanaram a cabeça.



— O que poderá ser? — disse a avó.
 Àquela hora o carteiro ainda estava longe.
 Os avós não tinham visto nada da estranha figura e os pequenos não ousavam responder.
 Não podiam dizer: “É um coelho mecânico, grande como um homem, que vem sozinho e está a bater as botas na soleira da porta!”
Sentiu-se ainda um roçar na parede, depois ouviu-se bater à porta.
 Os avós olharam um para o outro e depois para a porta.
 Como voltaram a bater com mais força, o avô gritou por fim:
— Entre!
A porta abriu-se lentamente e uma baforada gelada entrou na cozinha.
 Desta vez era o coelho quem trazia o Inverno no pelo cinzento. Porque era mesmo ele que se encontrava ali, de pé, na soleira da porta, surpreendido com o calor e o cheiro do lume onde se cozinhava carne de coelho verdadeiro.
A avó correu a fechar a porta.
 E não é que o coelho se põe a falar!…
— Bom dia, bom dia — disse ele. — Venho muito cedo, desculpem, mas…
Os pelos cinzentos afastam-se à altura do rosto, aparecem uns grandes óculos, depois um nariz muito vermelho, depois uns bigodes espetados como uma vassoura de crinas de cavalo e a seguir uma cara de barba branca, parecida com a do avô.


— Mas, é o Vicente! — disse o avô, admirado. — É o Vicente!
E era verdade! Era mesmo o Vicente.
 E só quando tirou o boné de orelhas levantadas e despiu a peliça cuja gola lhe tapava os olhos é que as crianças tiveram a certeza de que o coelho mecânico era um homem.
 Nunca o tinham visto, mas o avô já lhes tinha falado muitas vezes daquele velho amigo.
O tio Vicente limpava os óculos, limpava as lágrimas que lhe corriam dos olhos e repetia:
— Quase nem vos vejo.
 O calor, depois do frio, faz-me sempre chorar. E os óculos ficam embaciados.
Não via, mas podia falar e ouvir.
 Rapidamente se sentou ao canto da lareira junto do avô e pôs-se a contar histórias do seu tempo de rapaz. O avô também contava as suas.
 Falavam ao mesmo tempo, não ouviam o que cada um dizia, mas ambos pareciam felizes.
As crianças tinham voltado para a janela. Já não havia grãos, mas algumas aves teimavam em procurá-los.
Uma sombra passou sobre a neve, um pássaro grande, preto, baixou para ir pousar em cima da árvore morta. Gerardo voltou-se e disse:
— Avô, está uma águia em cima da árvore morta! Anda depressa! Anda ver depressa, avô!
O avô nem se mexeu, mas Vicente levantou-se e juntou-se às crianças.
 Com os óculos redondos, e agora já limpos, em cima do nariz, disse:
— Não é uma águia, é um corvo. E a árvore é um ácer, mas não está morta.
Do seu sofá, o avô gritou:
— Já está morta há dois anos. E, mal possa, vou arrancá-la.
— Asseguro-te que não está morta — afirmou Vicente. — As árvores nunca morrem…
— Não me digas uma coisa dessas! — disse o avô admirado. — Garanto-te que já passaram duas primaveras sem ela dar rebentos. 
Digo-te que está morta e pronta para ser queimada.


Vicente olhou-os a todos mas dirá-se-ia que não estava a vê-los, que fixava outra coisa distante, para lá do fim da planície.
— Repito que as árvores nunca morrem — disse. — E vou provar-vos. Hei-de prová-lo, fazendo cantar o vosso velho ácer.
O avô pareceu não acreditar, mas calou-se. Vicente era seu amigo, por isso não queria contrariá-lo.
As crianças entreolharam-se. Será que tinham ouvido bem?
Vicente voltara a sentar-se no cadeirão e retomara já o fio das suas histórias. Vai ficar por ali até ao anoitecer e partilhar com eles a refeição do meio-dia.
Quando Vicente se vai embora, o avô acompanha-o até ao ácer. 
Andam em volta da árvore como se jogassem às escondidas, e parecem minúsculos à luz do crepúsculo que afasta tudo e confere à paisagem o aspecto de um postal de boas-festas.
Mal o avô regressa, as crianças correm para ele e perguntam:
— Então, o que é que ele disse?
— O Vicente teima que o ácer não está morto. E até me prometeu que ia fazê-lo cantar.
— Mas como, avô? Como é que ele irá fazer?
— Esse é o segredo dele.
 Mais tarde verão. 
Não posso dizer-vos nada porque ele nada me explicou. É preciso esperar.
As crianças bem insistem, mas o avô não diz mais.
O tempo passou. 
A neve derreteu e as chuvas da Primavera limparam as últimas marcas do Inverno no flanco da colina.
 As crianças nunca mais pensaram no tio Vicente. Porém uma tarde, ao regressarem da escola, aperceberam-se de que faltava qualquer coisa na paisagem.
 Era o ácer. No seu lugar havia apenas um cepo enorme, alguns ramitos, pedaços de casca e serradura semelhante a um montinho de neve que tivesse ficado ali esquecido pelo sol.
— Deve ter sido o avô que cortou a árvore — disse Gerardo. — Não devia ter feito isso. O senhor Vicente tinha prometido que ia fazê-la cantar.
— E tu acreditas nisso? — perguntou Isabel.
— Claro, porque foi o senhor Vicente que prometeu.



— Mas o avô acha que uma árvore morta só pode cantar no lume!
— Não quero que a queimem — disse o rapaz. — Anda, vem depressa!
Desataram a correr para casa. 
Pousaram as pastas ao fundo das escadas e escaparam-se para a casa da lenha, uma pequena cabana de madeira que o avô construíra ao fundo do quintal.
A porta estava escancarada e a carroça de mão parada diante da entrada.
 As crianças correram a toda a velocidade e chegaram coradas e ofegantes.
 O avô e Vicente saíam da casinha da lenha. 
Um troço do ácer ainda estava em cima da carroça.
 As crianças olharam para Vicente com ares de reprovação nos seus olhos claros, mas o velhote sorriu-lhes por baixo do bigode. 
Aproximou-se do carro e pôs-se a acariciar o tronco do ácer como se fosse um cão.
As mãos do senhor Vicente são grandes, com dedos compridos e grossos e unhas levantadas na ponta, com uma forma esquisita. 
Quando Vicente acaricia a madeira parece que está lixá-la, de tão ásperas que são as suas mãos.
 Quando cumprimenta, dirá-se-ia que traz calçadas luvas de ferro, como as que usavam os cavaleiros na Idade Média.
Acariciou a madeira e piscou o olho, dizendo:
— Não se preocupem, ele cantará. Prometi e cumpro sempre as minhas promessas.
— Há-de cantar no fogão — resmungou o avô. — Como todas as árvores que morrem. Fazê-lo cantar assim é fácil.


O avô devia estar a brincar! Mas Vicente deu ares de se zangar.
— Cala-te! — gritou ele. — Tu não percebes nada. Eu cá digo-te que vai cantar melhor do que quando estava vivo, com os pés enterrados e a cabeça ao sol. Melhor do que nos dias em que estava carregado de pássaros e era sacudido pelo vento.
As crianças escutavam aquela linguagem curiosa. Como pareciam duvidar, Vicente agarrou cada uma pelo braço e apertou-as com as suas mãos duras. Apertava muito, quase magoava, mas aquela força dele dava muita segurança. Virou-se para a carroça e continuou a apalpar o grande tronco deitado em cima das tábuas.
Inclinava-se, batia com os nós dos dedos, escutava, levantava-se meneando a cabeça, exatamente como faz o médico quando estamos doentes na cama, com muita febre.
 Mas Vicente não parecia preocupado. Continuou a auscultar a árvore, repetindo de vez em quando:
— Está boa… está muito boa… Está saudável… Há-de cantar… Hão-de ver que é verdade o que lhes digo.
 Há-de cantar, melhor do que quando estava carregadinha de pássaros.
No dia seguinte, tinha desaparecido tudo. Na cabana já só restavam alguns ramos e um monte de serradura.
 As crianças puseram-se à procura e lá acabaram por encontrar o ácer no sótão. Mas, desta vez, ficaram muito decepcionadas.
 A árvore estava irreconhecível, toda transformada em grandes tábuas.
 Tinha mesmo o aspecto de uma árvore morta.
— O senhor Vicente estava a brincar connosco — disse Isabel. — Ele nunca vai fazer cantar esta árvore. Só se fosse feiticeiro. 
E o senhor Vicente não é nenhum feiticeiro.
— Sabes lá?
Isabel olhou para o irmão muito espantada.



— Achas que ele é feiticeiro!? — perguntou.
Gerardo deu-se ares de importante:
— Não seria impossível.
 Eu sei cá umas coisas… umas coisas.
De facto, gabava-se de que estava mais bem informado do que a irmã, mas o certo é que não sabia mais acerca do tio Vicente do que vocês e eu.
 Mas a Primavera está cheia de vida e as crianças depressa esqueceram a velha árvore.
 Antes da seiva começar a subir, o avô tinha ido à floresta e trouxera dois áceres pequenos que plantara à beira do caminho, de cada lado do velho cepo. Agora, aquelas árvores pequenas já tinham folhas e começavam a cantar com o vento que vinha do horizonte distante, empurrando enormes nuvens brancas no céu azul.
Passou a Primavera e depois, um dia, no mês de Julho, o avô tirou o carro de mão da casa da lenha e foi ao sótão buscar as tábuas maiores que tinha feito com o ácer.
— Vamos lá então à oficina do Vicente — disse.
Isabel trepou para a carroça.


 O avô puxava pelo timão, enquanto Gerardo empurrava atrás. Andaram mais de uma hora até chegarem à aldeia. Uma hora debaixo de um sol escaldante.
Vicente vivia mesmo no fim da aldeia, numa casa cujas janelas viam correr a água do ribeiro. 
Mal ouviu ranger as rodas de ferro na calçada do pátio, Vicente apareceu à soleira da porta. Levantou os braços num gesto cômico e exclamou.
— Diacho! Aqui estão clientes sérios! Há quanto tempo vos esperava!
Vestia uma camisa clara e um avental de lona azul que lhe chegava aos pés. As mangas arregaçadas deixavam ver os antebraços magros e por isso as mãos pareciam ainda mais gordas.
Ajudou o avô a transportar as tábuas até ao fundo de um grande barracão sombrio onde as crianças não se atreveram a entrar.
 Lá de dentro vinha um cheiro esquisito, por isso deixaram-se ficar ali de mãos dadas.
Contudo, Vicente mandou-as entrar para um outro compartimento mais claro. O sol, reflectido pela água do ribeiro, dançava no tecto.
— A madeira — dizia ele — é um material nobre.
O reflexo da água do ribeiro brincava por cima das suas cabeças, assemelhando-se a ondas agitadas.
— Dêem-me licença de que acabe o que estava a fazer — disse Vicente.
O avô aprovou e o velhote lançou-se ao trabalho.
 As suas mãos enormes, que pareciam tão desajeitadas, podiam manipular os objetos mais minúsculos e mais frágeis. Vicente explicou que estava a polir o mecanismo da fechadura de um cofre de segredo. Fazia tudo em madeira, até as fechaduras e as dobradiças.
Para ele, o metal estava ao serviço da madeira.
— A madeira — dizia — é um material nobre. Vivo? Sempre vivo. O metal é bom para fabricar os instrumentos que permitem trabalhar a madeira. Mas a madeira… a madeira…


Quando pronunciava esta palavra, os olhos nem pareciam os mesmos.
Vicente não era um homem como os outros: era um apaixonado pela madeira.
Falava dela como de um ser vivo, como de uma pessoa da sua família com quem vivesse há anos.
 Com a madeira podia fazer tudo. Caixinhas pequeninas incrustadas de marfim e de embutidos complicados.
 Pequenas mesinhas, cujos pés eram tão finos que as crianças até sustinham a respiração com receio de as fazer cair.
As paredes da sua oficina estavam guarnecidas de instrumentos colocados em prateleiras ou suspensos em ganchos. 
Havia plainas de todos os tamanhos e de todas as formas, serras, goivas, tesouras, galopas, caixas com formas, compassos e muitos outros instrumentos cujos nomes as crianças estavam a ouvir pela primeira vez.
 E depois, havia frascos de cola, garrafas de verniz, bolas de cera e madeira por todo o lado.
 Madeira de todas as qualidades, de todas as formas e de todas as cores.
Quando Isabel, que era muito curiosa, se dirigia para uma pequena porta e já tinha a mão pousada no puxador, Vicente correu até junto dela:
— Não, não — disse ele — não entres aí… É nesse quarto que está o meu segredo.
Isabel imaginou o quarto do Barba-Azul, mas riu-se. Há muito tempo que não acreditava nessas coisas.
— É o meu segredo — repetiu Vicente. — Hás-de conhecê-lo quando ouvires a tua árvore cantar.
O Verão passou demasiado depressa, com as férias e as maravilhosas correrias pelo campo e pela floresta.


 As duas árvores plantadas pelo avô cresciam bem.
 Os pássaros já lá pousavam. No início das aulas, as suas folhas começaram a ficar amarelas e os fortes ventos de Outono levaram-nas para longe.
 Os dois pequenos áceres pareciam mortos, mas Gerardo e Isabel sabiam que acabavam de adormecer para o Inverno. 
Por causa dos trabalhos de casa, sempre difíceis, e das lições a estudar, as duas crianças não pensaram mais nos áceres nem na promessa do tio Vicente.
Numa quinta-feira de manhã, uns dias antes do Natal, os pequenos aperceberam-se, ao acordar, de que a neve tinha chegado.
Havia um grande silêncio em volta da casa, e a luz filtrada pelas frinchas das persianas era mais branca do que a das outras manhãs.
 Levantaram-se muito depressa, apesar do frio.
— Os pássaros! — disse Isabel. — Temos de pensar nos pássaros!
Ia abrir a janela para deitar comida, quando avistou, a cambalear pela vereda branca, o coelho mecânico.
— Vicente, é o tio Vicente!
Era mesmo ele, vestido com a peliça cinzenta e o boné de orelhas, mas trazia debaixo do braço um grande volume, comprido, embrulhado num papel castanho. 
O velho homem aproximava-se lentamente, acertando com dificuldade no traçado do caminho.
 Passou pelos dois áceres que mal se viam no meio daquela brancura, o boné dançou por uns momentos acima da sebe e depois desapareceu.
— É ele! — repetiam. — É mesmo ele!
Não sabiam o que trazia o tio Vicente, mas o coração pôs-se-lhes a bater muito depressa. 


Mal os pés do velho bateram na soleira de pedra, Gerardo correu a abrir a porta.O ar que entrou ao mesmo tempo que Vicente vinha salpicado de flocos brancos. O fogo crepitou mais forte e depois fez-se silêncio.
 Estavam ali os quatro a olhar para o tio Vicente e para o seu embrulho muito bem atado.
Vicente pousou o embrulho em cima da mesa, tirou os óculos, limpou-os devagarinho, assoou-se, voltou a pôr os óculos e aproximou-se do fogo, a esfregar as mãos, que faziam um ruído como se fossem de lixa.
— Está-se melhor aqui do que lá fora — disse ele.
As crianças estavam impacientes.
 Uma de cada lado da mesa, miravam o embrulho sem ousarem tocar-lhe. O velho homem parecia que sentia prazer em fazê-las esperar.
 Observava-as pelo canto do olho e deitava uns sorrisos cúmplices aos avós.
Por fim, virou-se e disse:
— Então, por que esperam para o abrir? Não sou eu que vou desmanchar o embrulho!
Quatro mãozinhas voaram ao mesmo tempo. 
Eram muitos nós e estavam muito apertados.
— Avó, empresta-nos a tesoura…



— Não — disse Vicente. — É preciso aprender a paciência e a economia. Desfaçam os nós e não estraguem nada, quero recuperar o fio e o papel.
Foi preciso ter paciência, magoar as unhas, aborrecer-se um bocadinho. O tio Vicente ria-se.
Os avós, tão impacientes como as crianças, esperavam, seguindo com os olhos todos os seus gestos. Finalmente o papel foi retirado, e surgiu uma caixa comprida de madeira avermelhada e luzidia.
 Era mais larga num lado do que no outro. Vicente aproximou-se lentamente e abriu-a.
No interior, numa cama de veludo verde, dormia um violino.
— Aqui está, e tudo isto feito com a vossa árvore — disse o Vicente.
— Meu Deus — repetia a avó, que juntara as mãos em sinal de admiração. — Meu Deus, que lindo que é!
— Ora, uma destas!… com que então!… — gaguejava o avô. — Sabia que eras habilidoso, mas não tanto!
O velho artesão sorria. Passou várias vezes a mão pelo bigode antes de dizer:
— Percebem agora por que é que não queria deixar-vos entrar na estufa? É que veriam lá violinos, guitarras, bandolins e muitos outros instrumentos. E vocês teriam adivinhado tudo.
É verdade! Sou luthier. Faço violinos… E o ácer, sabem, é a madeira que melhor canta.
A sua mão avançou lentamente para acariciar o instrumento, depois retirou-a a tremer.
— Então? — disse ele a Gerardo. — Não queres experimentar? Não queres fazer cantar a tua árvore? Anda lá, podes pegar nele.
 Olha que não morde, fica tranquilo.
O rapaz retirou o violino da caixa e pegou nele como via fazer aos músicos. Pousou o arco em cima das cordas e fez sair uma chiadeira horrorosa. 
A avó tapou os ouvidos, enquanto o gato, acordado em sobressalto, desaparecia debaixo do guarda-loiça. Todos se riram.
— Está bem! — disse o avô. — Se é a isto que chamas cantar!
— Tem de aprender — disse Vicente pegando no instrumento, que colocou debaixo do queixo.
E o velho luthier de mãos enormes pôs-se a tocar. 
Tocava e caminhava devagarinho em direção à janela.
 Imóveis, as crianças olhavam e escutavam.
Era uma música muito suave, que parecia contar uma história semelhante às velhas lendas vindas do fundo do horizonte.
Vicente tocava, e era mesmo a alma da velha árvore que cantava naquele violino.
Bernard Clavel
L’arbre qui chante






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